uma reflexão sobre abordar (ou não) o tema da guerra
📷 Photo by Priscilla Du Preez on Unsplash
o mundo despertou para guerra no dia 24 de fevereiro, com as notícias dos ataques da Rússia à Ucrânia. é o assunto do momento e tem tomado conta das nossas preocupações e é natural que as crianças já nos tenham ouvido falar sobre o assunto ou que tenham visto algo na comunicação social. assim sendo, o que fazer? devemos esconder o assunto ou trazê-lo para a conversa?
na semana passada o Jason Buckley abordou o assunto num grupo relacionado com a filosofia para crianças e acabou por partilhar algumas ideias bastante pertinentes na sua newsletter. gostaria de chamar a atenção do/a leitor/a para alguns pontos, inspirada pela reflexão de Buckley.
depois da pandemia covid19, uma guerra
o mundo ainda está a lidar com a pandemia e cada um de nós está a adaptar-se às regras, às novas formas de conduta. não podemos pensar que estamos todos no mesmo ponto de entendimento do que é a vida pandémica. alguns de nós perderam familiares, outros passaram por sucessivos isolamentos profilácticos, alguns adoeceram e vivemos confinamentos com emoções diversas.
neste contexto é natural que haja crianças que queiram falar sobre a guerra, deixando de lado a pandemia; outras, nem por isso. é fundamental que sejamos sensíveis a estas diferenças. é fundamental escutar as crianças, as suas perguntas e os seus comentários:
The best approach is to listen carefully to children's spontaneous questions and comments, and then respond to them in an appropriate, supportive way. Let children's concerns, in their own words, guide the direction and depth of the discussion. (Sheldon Berman, Sam Diener, Larry Dieringer, and Linda Lantieri)
no que diz respeito às oficinas de filosofia para/com crianças, não creio que se deva forçar o tema ao grupo, mas sim encontrar um espaço e um tempo para que aqueles que querem conversar sobre o tema possam fazê-lo. poderá ser um tempo no intervalo, antes ou depois da oficina de filosofia. tudo dependerá do contexto em que trabalha com as crianças.
é natural que as crianças tenham perguntas muito concretas sobre a guerra; para responder temos de estar bem informados ou então responder "não sei" quando de facto não sabemos. tratar a guerra pelo nome, dizer quais são os países envolvidos, é importante para não criar a ideia de que as guerras são todas iguais ou que são todas a mesma. infelizmente, há outras guerras em curso no mundo, umas que duram há vários anos, outras menos mediáticas.
The answers to some questions that children ask are not always clear and straightforward. Some are much deeper. When children ask such questions as, "How come we have war?" or, "What will happen when the war is over?" we can explain that some people think one way about it and others think another. We might ask, "What do you think?" It is important for children to hear that there are differences of opinion and different ways of seeing the conflict. (Sheldon Berman, Sam Diener, Larry Dieringer, and Linda Lantieri)
uma estratégia mental para lidar com a angústia
nos últimos dias tenho sentido bastante ansiedade e angústia com as notícias que chegam da Ucrânia. há inúmeros relatos que nos desassossegam e que nos revoltam. o que fazer?
nestes momentos os estóicos são os meus melhores amigos. diariamente tenho lido a proposta estóico todos os dias, para poder reflectir sobre aquilo que posso e não posso mudar.
no livro a arte da boa vida, Rolf Dobelli partilha uma ferramenta mental para que seja possível lidar com as notícias catastróficas do mundo, procurando manter o equilíbrio. eis as suas sugestões:
👉 compreender que não posso fazer muito perante problemas como as guerras, os conflitos e o terrorismo, que encerram complexidade e cujo desfecho é imprevisível;
👉 para a maioria das pessoas que está a ler este artigo, a melhor forma de ajudar passa por fazer um donativo para uma associação ou organização que esteja a desenvolver trabalho no terreno. informe-se bem sobre as organizações, verifique a sua credibilidade e contribua com o que for possível;
👉 consumir notícias em doses moderadas. não adianta querer ver tudo e querer saber de tudo. por exemplo, a guerra que tomou conta da Europa na última semana é demasiado complexa e a par de informação, há muita desinformação na comunicação social e nas redes sociais online. escolha bem as fontes e actualize-se de vez em quando.
👉 assumir uma postura estóica perante o sofrimento, focando naquilo que podemos fazer, como escolher uma associação de apoio humanitário e comprometer-se com uma ajuda. nem eu nem o/a leitor/a vamos poder terminar com o mal que existe no mundo.
⚠️ (o último ponto da estratégia de Dobelli pode ser um pouco duro. cá vai.)
👉 interiorizar a ideia de que não somos responsáveis pelo mundo em que nos encontramos. Dobelli explica: "O prémio Nobel Richard Feynman evoca este pensamento de John von Neumann, o genial matemático e pai da informática. "John von Neumann ofereceu-me esta interessante ideia: que não temos de ser responsáveis pelo mundo em que nos encontramos. Desenvolvi, por isso, um sentido muito poderoso de irresponsabilidade social (...)". o que quer isto dizer? "não se sinta mal por se concentrar no seu trabalho, em vez de estar em África a construir hospitais. Não há motivo algum para se sentir culpado por estar, por acaso, numa situação melhor do que a de uma vítima de uma bomba em Alepo - podia ser perfeitamente ao contrário. Viva uma vida decente e produtiva, e não seja um monstro."
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seja qual for a sua estratégia pessoal, tenha uma. na medida do possível, inclua as crianças na sua estratégia de forma a procurar equilibrar as emoções e os pensamentos acerca dos acontecimentos terríveis que assolam o mundo.
termino com as palavras do Jason Buckley:
Another sort of failing to think is to only think about one side of things. The pandemic was awful, but millions of people gave up freedoms and worked incredibly hard for the health of others; during this war, many nations and thousands of people who are not directly affected will help those who are, and very brave individuals within Russia itself are already protesting the war. Of course, it would be much better if there weren’t pandemics and wars, and the good they bring out of people doesn’t make up for the suffering they cause. But there is good in the world as well as bad, and if we forget that we are lapsing into lazy thinking, which is the opposite of good philosophy.
(e ainda)
- para ler: Talking With Children About War and Violence In the World e How to talk to pupils about the news;
- a Rita do Kit Literário fez uma selecção de livros que abordam o tema da guerra, que pode consultar na sua página de instagram. caso haja um pedido por parte das crianças para falar sobre o tema, um livro pode ser uma boa forma de criar o espaço para essa conversa;
- para voltar a ler: 8 dicas para topar desinformação online.