Sócrates nunca disse “só sei que nada sei”.
Sócrates e a redefinição da sabedoria - um texto de Vitor Lima
"‘Só sei que nada sei’, professor”, escreveu o aluno como resposta à questão de sua prova de Filosofia. Quis dar uma de esperto para cima do mestre. Pudera. Muitos docentes - e talvez este do meu exemplo - ensinam a frase de modo equivocado.
É comum ouvir “Foi Sócrates quem disse isso, e o seu significado é algo como ‘quanto mais eu sei, mais eu sei que não sei’, ‘ninguém sabe de nada nessa vida’, ou até ‘ninguém pode afirmar nada sobre nada com certeza’.
Todas essas teses soam inteligentes. Com a legitimação de que provêm de Sócrates, um dos pais fundadores da Filosofia ocidental, então… Aí é que soam sábias mesmo.
Na prática, contudo, mostram-se ou clichés sem significado, ou simplesmente falsidades. É preciso, então, investigar a origem deste mito – Sócrates nunca disse “só sei que nada sei”.
Como sabemos, Sócrates nada escreveu. Sabemos do personagem mediante três fontes principais contemporâneas suas: Platão, o filósofo; Xenofonte, o soldado; Aristófanes, o comediógrafo.
O último o ridicularizava, como é esperado de alguém que escreve comédias. Portanto, não se trata de uma fonte confiável para encontrar o Sócrates histórico.
O do meio foi discípulo seu, pertenceu-lhe ao círculo íntimo. Contudo, retrata um Sócrates mais afeito à disciplina e à cidadania militares que aos comportamentos de um livre pensador. Isso é resultado, contudo, mais da própria personalidade do retratista que da tentativa de utilizar tintas que capturem fielmente a realidade histórica.
O primeiro também frequentou seu entorno e se tornou um dos filósofos mais célebres de todos os tempos, utilizando justamente seu mestre como personagem principal de seus escritos. Todavia, o Sócrates de Platão é confiável enquanto documento histórico?
Enquanto documento, sim. Enquanto descrição fiel da realidade, não. O Sócrates de Platão será sempre isto mesmo: o Sócrates de um autor, não um indivíduo que fala por si mesmo.
Feita essa ressalva, costuma-se confiar mais no que disse Platão que no que disseram os outros dois. Primeiro, porque há mais textos de sua autoria disponíveis sobre o assunto. Segundo, porque é filósofo – o pressuposto, assim, é que ele, mais que os demais, saberia expressar o espírito filosófico do mestre.
Além disso, os intérpretes dos textos platônicos dividem sua obra em três: diálogos de juventude, diálogos intermediários e diálogos de maturidade. A diferença se deve a inúmeros fatores, entre eles estilo, vocabulário, temas e personagens utilizados. Dos três rótulos, aquele que mais se aproximaria de um Sócrates histórico seria justamente o primeiro – nele, Platão ainda não desenvolve as ideias que o tornaram célebre, como a Teoria das Formas, tampouco a autocrítica típica de sua fase final.
Os diálogos de juventude partilham de duas principais características. A primeira é que retratam um Sócrates encarregado de questionar seus interlocutores acerca de assuntos éticos e fazê-los cair em contradição. Trata-se do uso do método chamado elenchos, isto é, refutação. A segunda é que os diálogos nunca terminam numa conclusão consensual, mas sim em aporia, ou seja, impasse, ausência de alternativas viáveis.
Nessas situações, Sócrates é pintado como um hábil questionador, um exímio argumentador, porém um péssimo propositor de conclusões definitivas. Vale dizer, Sócrates não é apresentado como alguém que coloca uma tese a ser defendida, mas alguém que retira da mesa as teses identificadas como claramente contraditórias entre si. Neste personagem - que, por hipótese, é o histórico - mais vale a busca metódica do conhecimento que a sua captura definitiva.
É exatamente desta leva de diálogos platônicos que vem o texto, de onde retiraram o “só sei que nada sei”. Na “Apologia de Sócrates” (21d-e), de Platão, Sócrates diz o seguinte:
“À medida que me afastava, pensei comigo: ‘Sou mais sábio do que esse homem; nenhum de nós dois realmente conhece algo admirável e bom, entretanto ele julga que conhece algo quando não conhece, enquanto eu, como nada conheço, não julgo tampouco que conheço. Portanto, é provável, de algum modo, que nessa modesta medida seja eu mais sábio do que esse indivíduo - no fato de não julgar que conheço o que não conheço’”.
A tradução acima é de Edson Bini, da Editora brasileira Edipro, na coleção III dos diálogos platônicos completos. Aqui outra tradução do mesmo trecho:
“A partir daí me tornei odioso a ele e a muitos dos circundantes e, indo embora, fiquei então raciocinando comigo mesmo - ‘Sou sim mais sábio que esse homem; pois corremos o risco de não saber, nenhum dos dois, nada de belo nem de bom, mas enquanto ele pensa saber algo, não sabendo, eu, assim como não sei mesmo, também não penso saber… É provável, portanto, que eu seja mais sábio que ele numa pequena coisa, precisamente nesta: aquilo que não sei também não penso saber.’”
A tradução acima é de André Malta, da Editora L&PM Pocket. Como você pode notar, a expressão “só sei que nada sei” simplesmente não aparece.
O que Sócrates está dizendo é que não sabe – assim como seu interlocutor – “algo admirável e bom” (Edson Bini) “nada de belo e de bom” (André Malta), não que não sabe de nada em absoluto.
Em seguida, aliás, declara com todas as letras:
“Portanto, é provável, de algum modo, que nessa modesta medida seja eu mais sábio do que esse indivíduo - no fato de não julgar que conheço o que não conheço” (Edson Bini).
Ou, na outra tradução:
“É provável, portanto, que eu seja mais sábio que ele numa pequena coisa, precisamente nesta: aquilo que não sei também não penso saber” (André Malta).
Novamente, Sócrates diz que sabe de algumas coisas e não de outras, e o que o torna mais sábio é justamente ter consciência do que não sabe, ao passo que o seu interlocutor julga saber o que não sabe.
Nada de declaração de não saber nada.
Quando consideramos outra obra platônica, o diálogo “O Banquete” (198d), a frase atribuída ao filósofo fica ainda mais insustentável. Veja:
“‘Eríximaco’, disse Sócrates, ‘ninguém deixará de aprovar tua sugestão. De minha parte, não vejo como pudesse declinar, quando a única coisa de que entendo é a arte do amor…’”
Sócrates diz - aí, sim - de modo expresso que entende e, portanto, conhece a arte do amor.
Mas de onde vem, então, essa atribuição afinal?
A origem é incerta. Uma hipótese, porém, vem do método socrático. O filósofo aborda seus interlocutores, fazendo-lhes perguntas para desafiar-lhes as crenças. Empurra-os em direção ao precipício da contradição e, assim, mostra-lhes o quanto desconhecem o assunto que julgam conhecer.
E o faz com ironia. Isso quer dizer que, em muitas ocasiões, autodeclara-se um ignorante no assunto sobre o qual pretende conversar. Porém, entender tais declarações de modo literal é ignorar como o diálogo se desenvolve. No contexto discursivo, Sócrates revela-se justamente o oposto: alguém hábil e apto para falar sobre os assuntos que levanta. Na prática, fica claro que a sua estratégia é dizer o contrário do que expressamente declara, ora para desarmar o seu interlocutor, ora para ridicularizá-lo.
Então, não. Sócrates nunca disse “só sei que nada sei”. Muito menos defendia ser um ignorante. O que o filósofo fez foi redefinir o que significa sabedoria. A partir dele, ser sábio passou a ser alguém que busca entender os limites do próprio conhecimento, ao invés de querer ser um erudito que de tudo declara saber. Ter um conhecimento limitado, no entanto, está muito longe de ter conhecimento nenhum.
Vitor Lima - co-fundador Isto Não é Filosofia
(assista aqui ao vídeo no canal INÉF)