Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

filocriatividade | #filocri

filosofia para/com crianças e jovens | mediação cultural e filosófica | #ClubeDePerguntas | #LivrosPerguntadores | perguntologia | filosofia, literatura e infância

filocriatividade | #filocri

filosofia para/com crianças e jovens | mediação cultural e filosófica | #ClubeDePerguntas | #LivrosPerguntadores | perguntologia | filosofia, literatura e infância

13 de Abril, 2023

"(...) sinto que valorizo cada vez mais o processo de escuta da criança."

- a filosofia para / com crianças e os seus efeitos na prática pedagógica da Sofia e do André

joana rita sousa / filocriatividade

📍 o André Boaventura é professor do 1.º CEB e dedica-se à escrita e narração oral para o público infantil e adulto. É ainda guionista e tradutor.

📍 a Sofia Pereira é professora do 1.º CEB. Mestre em Educação Pré-Escolar e Ensino do 1.º CEB.

🙋🏽‍♀️ conheci o André no twitter e já tinha partilhado o papel de formanda num curso da Academia do Diálogo. mais recentemente estive com o André e com a Sofia numa formação organizada pela Casa do Professor, onde tive o privilégio de ser formadora de ambos [a propósito, se quiser inscrever-se nas próximas edições desta formação, consulte AQUI]

🙋🏽‍♀️  resolvi convidar ambos para uma troca de ideias sobre a  importância da filosofia para / com crianças na sua prática pedagógica. o André e a Sofia trabalham na Escola Jasmim e nesta escola a filosofia para / com crianças é uma aposta forte. 

🙋🏽‍♀️  o ponto de encontro para esta conversa foi um google doc e aqui ficam as nossas perguntas e respostas. 

fotografia de um trabalho da escola, vê-se uma cabeça em papel e vários pensamentos escritos à volta.

 

[joana]   André e Sofia, sei que já têm experiência de trabalho na área da filosofia para / com crianças. Como é que se deu o vosso encontro com esta área? 

A: A filosofia para/com crianças é um dos pilares da Escola Jasmim, onde a Sofia e eu somos professores. Cada sala, desde o Pré-Escolar ao 4.º Ano, reserva um momento semanal para essa prática. Há cerca de um ano, a equipa pedagógica concluiu uma formação (alinhada com a matriz Lipman/Sharp) com a fabulosa Maria José Figueiroa-Rego. Desde essa altura, tenho vindo a ficar cada vez mais encantado com o leque alargado de competências que esta aposta possibilita junto dos miúdos, das quais destaco o pensamento crítico e a abertura ao outro. Sofia, o que é que mais te tem cativado nesta área?

S: Conheci a Filosofia com Crianças quando comecei a trabalhar na Escola Jasmim. Inicialmente, observei as sessões dinamizadas por uma colega e concluí a formação que o André mencionou. Desde então, o entusiasmo foi crescendo e senti que podia aprofundar mais esta área a nível profissional, buscando a melhoria das práticas, a inovação e a diversificação de estratégias, mas também a nível pessoal. As competências que potencia nas crianças são, sem dúvida, o que mais me cativa nesta área, como o pensamento crítico e criativo, assim como competências de diálogo, transversais a qualquer outra área.

 

[joana]  Tendo em conta que acumulam o facto de serem professores titulares da turma com a qual desenvolvem as oficinas de filosofia, qual é o vosso maior desafio?

A: Pensando só nessa dupla condição, seria garantir que a quantidade - tantas vezes avassaladora - de solicitações não nos impeça de dedicarmos tempo e energia à preparação das sessões com as doses necessárias de fulgor, carinho e loucura. O meu maior desafio, para já, é a própria dinamização de sessões que mantenham a turma envolvida. Isto é um bocado como os surfistas… A implicação dos miúdos está terrivelmente dependente do conjunto de decisões que, como facilitador, tens de ir tomando consoante os rumos inesperados por onde o diálogo envereda e que te podem levar até paragens inóspitas, apanharem-te na curva ou, o pior de tudo, conduzirem a becos sem saída. Felizmente, a minha experiência em narração oral e “stand-up comedy” já me ensinou em abraçar essa vertigem e curtir a incerteza. Sinto que o imprevisto me deixa mais desperto para o mistério e assombro.  

S: Concordo com o André, a preparação da sessão é sempre algo que me preocupa e me faz perguntar se lhe dediquei o devido tempo e entrega. Já estive na posição de observadora, em que não era eu, enquanto professora titular, a dinamizar as oficinas. Quando assim era, conseguia distanciar-me um pouco mais do diálogo e observar o grupo com clareza. Tinha uma outra perceção, por exemplo, dos diferentes estilos de participação que até me surpreendiam, face ao que já conhecia das crianças. Não significa que não consiga observar o grupo com esta dualidade de funções, mas somam-se outros papéis e funções durante as oficinas que me direcionam a atenção. 

 

[joana]  Facilitar um diálogo implica gerir uma série de coisas ao mesmo tempo: o pensamento que se desenrola no grupo, o pensamento de cada pessoas, o pensamento de quem facilita, o registo das notas no quadro, escolher a pergunta que se vai fazer, gerir as intervenções. Qual é a grande diferença entre a tarefa de ser professor/a e a tarefa de ser facilitador/a? 

S: Penso que as duas tarefas se coadunam, porque um professor é um facilitador de aprendizagens. Revejo, no meu dia a dia, essa azáfama de gerir diferentes coisas ao mesmo tempo. Muitas vezes, essa gestão vai muito mais além de facilitar um diálogo, porque outros fatores e situações acrescem e complexificam o nosso papel. É, provavelmente, um dos meus maiores desafios enquanto professora. Já me senti no meio de um turbilhão não sei bem de quê, de solicitações? Talvez. Por vezes, é necessário abrandar o ritmo e respirar fundo para conseguir dar resposta e gerir o que realmente importa naquele momento, principalmente durante a oficina de filosofia. 

A: Entre o professor e o facilitador, é mais o que une do que o que separa. Ambos estimulam a curiosidade e a criatividade, por exemplo. Contudo, há uma grande separação que está na gratuitidade versus dar e receber. Ao dar uma aula, já tenho uma expectativa bem definida do que quero receber e de como vou cobrar. Tanto o professor como o facilitador começam a sessão com uma meta definida. Só que eu, no papel de professor, no final de uma aula sobre tipos de triângulos, preciso de saber quem sabe distinguir os equiláteros, isósceles e escalenos. Essa prestação de contas leva a uma maior necessidade de recolha de evidências. Não é que as sessões de Filosofia sejam inócuas ou uma gracinha para descontrair. Nada disso. Porém, não há tanta pressão para que os alunos atinjam um nível de desempenho X ou Y até junho. Assim, as sessões de filosofia, mesmo com esse ritmo frenético e desconcertante, são mais leves. Será que, como facilitador, respeito mais os alunos do que como professor?  

 

quadro de ardósia com uma pergunta: o que é uma pergunta filosófica?

 

[joana]  O que é que a formação de 25h, Como criar condições para o diálogo, acrescentou à vossa prática em sala de aula? 

S: A formação já acrescentou e vai continuar a contribuir para inovar a minha prática em sala de aula. Não me refiro à inovação tecnológica, mas pedagógica na medida em que vai, cada vez mais, ao encontro das necessidades e interesses do grupo. Acrescentou, desde logo, pela alternância de diferentes tipos de propostas e desafios à turma, diversificando os trampolins para o diálogo. No diálogo em si, são várias as estratégias que estou a apresentar ao grupo de forma faseada, para ir introduzindo elementos surpresa/novos, cativando o entusiasmo do grupo e de acordo com a minha intencionalidade. Estratégias como definir papéis no diálogo, mapear o pensamento, por mim ou pelas crianças, avaliar a forma e o conteúdo da sessão com o grupo, recorrendo aos dados ou objetos, são algumas das que já apresentei à turma. Na verdade, penso que com a formação consegui reunir um conjunto de ferramentas fundamentais a implementar, mas que me abriram horizontes para pensar em tantos outros e acrescentar robustez às nossas oficinas de filosofia. E tu, André? Sei que já estás a pôr em prática algumas das aprendizagens retiradas da formação, como tem sido essa experiência e qual o feedback do grupo?

A: Subscrevo tudo o que disseste e, respondendo à tua pergunta, comecei a aplicar estratégias ou partilhar algumas das tarefas que a Joana nos atribuía junto dos miúdos, com um grau de adesão e envolvimento significativos. Além do que falaste, a integração de momentos de pré-diálogo está a ser uma prática interessante. Essas dinâmicas de "aquecimento" ou motivação (lançar um breve questionário, projetar uma citação…) têm predisposto a turma para a prática do diálogo filosófico, o que enriquece a sessão. Em seguida, quero experimentar essa atribuição de papéis e também a inclusão de cartões coloridos que anunciem a intenção do falante (perguntar, dar exemplo, comentar…). Quanto à turma, o entusiasmo e adesão saíram visivelmente reforçados em virtude desse alargamento das propostas, técnicas e recursos provocadores de diálogo filosófico. Tal como tu, não me aflige que as estratégias que a Joana partilhou percam o efeito surpresa/novidade ou que as esteja a gastar depressa de mais, porque o mais importante é esta experiência ter estimulado a nossa própria capacidade geradora. Estou confiante de que o conhecimento da turma, aliado a este conjunto de formações, a mais e variadas leituras e, claro, à experiência acumulada e partilhada, vão levar à conceção de propostas, estratégias e recursos adicionais. Depois, será necessário fazer um ou mais “test-drives” no terreno e partilhá-los entre nós e o resto da equipa, para que fiquem ainda mais afinados e refinados. 

 

[joana]   A filosofia para / com crianças mudou a vossa prática pedagógica? Se sim, em que sentido?

A: Passei a fazer muitas mais perguntas, não só na prática pedagógica, mas durante o meu dia-a-dia. Pode parecer um pormenor ou um ato descontextualizado, mas é indicador de uma mudança de fundo, que é o de olhar para a turma como uma comunidade de investigação, pela qual sou responsável e parte integrante. Não será uma mudança radical, porque já a perspetivava como uma comunidade de aprendizagem que vive da comunicação e colaboração para resolver problemas ou superar desafios em conjunto e de forma criativa. Porém, dou por mim, por exemplo, a dar-me a mim e aos miúdos mais liberdade para experimentar coisas novas. Aqui pode entrar a tal gratuitidade que associei ao facilitador, porque prevejo mais momentos em que dou carta branca a diferentes grupos de alunos para fazerem uma dada tarefa da forma que preferirem e combinarem. No final, trocamos ideias sobre esse momento e refletimos sobre essa experiência de aprendizagem. Talvez tenha ficado mais humilde.

S: Tal como tu, André, pergunto muito mais. Perguntar é, agora, uma prática mais comum na minha vida pessoal e profissional e começo a divertir-me a fazê-lo, confesso. Revejo-me nas tuas palavras, sinto que valorizo cada vez mais o processo de escuta da criança. Não significa que não acontecesse antes, mas agora sinto que estou mais atenta às provocações, àquelas ideias que uma criança traz e que facilmente podiam ser abandonadas e desvalorizadas, mas que têm grande potencial para a construção da sua aprendizagem se me permitir sintonizar. Estarei eu a valorizar mais o processo? A verdade é que aprendi a respeitá-lo, sem o comprometer em função da pressa para chegar a algum lado. Como num diálogo, que requer uma certa lentidão e repetição sem saber muito bem onde e como será o fim. Muitas vezes, dou o pontapé de saída e o percurso depende do traçar do grupo, procurando conduzi-lo até ao destino, sempre consciente da meta definida, como refere o André. No fundo, permito-me ser mais flexível desfrutando do processo.

 

s0iYiGkm.jpg

[joana]  E as crianças com quem trabalham: o que pensam elas sobre a filosofia? 

André: O consenso geral da turma é que é um momento positivo (“giro, divertido e engraçado”) que “parece fácil, mas é difícil”. Sendo mais concretos, dizem gostar de “resolver problemas” e “ficar muito tempo a pensar na mesma coisa”. Acham “desafiante”, pois é necessário “refletir para fazer boas perguntas e dar boas respostas” e porque algumas perguntas os deixam sem resposta. Falam muito na importância de passarem a conhecer o que os outros pensam, já que essas ideias diferentes “levam a pensar em várias coisas”, “ajudam a ver de uma perspetiva diferente da que terias pensado”, a “mudar de opinião” e a “arranjar mais respostas”. Os problemas que alguns alunos levantam é que algumas perguntas são “demasiado óbvias” e que se torna maçador e frustrante andar às voltas do mesmo assunto sem chegar a uma conclusão única. Os alunos que não têm uma participação tão ativa nos momentos de diálogo filosófico dizem que “não sabem bem o que dizer”.

Sofia: “A Filosofia faz-nos pensar”, começaram por dizer. Concordam que as “provocações”, um texto, uma imagem, uma frase, ou uma pergunta, fazem com que perguntem sobre “diversos assuntos”, porque “algumas coisas parecem não fazer sentido ou parecem estranhas” e querem pensar sobre elas. Valorizaram a procura de respostas com o contributo de todos onde “surgem opiniões diferentes” que têm de respeitar, “mas podem discordar”. “Fazemos muitos diálogos, uma espécie de conversa para procurar respostas”. Alguns sentem-se motivados pela imprevisibilidade do diálogo, com o não saber muito bem o fim, outros nem tanto, gostam de saber onde vamos chegar. “Fazemos perguntas, procuramos respostas, essas respostas levam-nos a outras perguntas, outras respostas e parece que isto nunca mais acaba”. 

 

*

ℹ️ a formação na qual tive oportunidade de ter a Sofia e o André como formandos terá uma 4.ª edição em Maio 2023, junto da Casa do Professor. saiba mais aqui.