Isso não é justo! Considerações sobre ética e justiça a partir da infância
[texto que serviu de base à minha comunicação no Congresso de Ética - ESG Week que teve lugar no dia 7 de Maio de 2024, no IPAMEI - organização da Associação Portuguesa de Ética Empresarial (APEE)]
Agradeço o convite à APEE para fazer parte deste evento que convida a parar, pensar escutar e dialogar sobre a ética e a justiça. Estes temas são-me muito caros tendo em conta os ossos do meu ofício: a Filosofia.
Desde 2008 que me dedico à filosofia para/com crianças e jovens. Sou recebida em jardins de infância, centros de estudo, escolas, ginásios, teatros, bibliotecas e museus para dinamizar oficinas de diálogo.
Inspirada por livros ou exercícios de perguntas, experiências de pensamento ou jogos, convido as crianças e os jovens a perguntar, responder, criticar, criar, conceptualizar, problematizar, sintetizar, analisar, explorar... e por aí vai.
Inevitavelmente surgem problemas relacionados com a ética e com a justiça. Alguns são deliberadamente propostos por mim, outros surgem espontaneamente nos diálogos.
O que devo fazer? – eis uma pergunta infantil
A kantiana pergunta “O que devo fazer?” não é uma pergunta exclusiva da idade adulta ou dos ambientes empresariais. Trata-se de uma pergunta que também é infantil e juvenil.
Isso não é justo! – é uma frase que se ouve desde cedo da boca de crianças.
Tal como acontece com as crianças, também nós, as pessoas adultas, temos momentos em que queremos exclamar Isso não é justo! Ao contrário das crianças, as pessoas adultas são menos transparentes neste reconhecimento, pois acabam por verbalizar menos do que as crianças.
Os dilemas éticos
No final de 2023 fui convidada pelo LU.CA Teatro Luís de Camões, em Lisboa, para pensar um conjunto de dilemas éticos que habitaram o teatro em Janeiro deste ano. Nesse espaço, as crianças, os jovens e as pessoas adultas eram convidadas a ler e a pensar sobre situações que nos colocavam pelo menos duas possibilidades de acção, sendo que nenhuma delas era plenamente satisfatória.
Eram apresentadas situações quotidianas que nos convidam a fazer escolhas difíceis. Este tipo de proposta permite criar uma espécie de laboratório de pensamento para ensaiar respostas.
Como considerar o ponto de vista infantil sobre a ética e a justiça?
Neste momento acredito que as pessoas aqui presentes tenham curiosidade para saber que dilemas foram apresentados e que respostas deram as crianças. Espero que essa curiosidade traduza a vontade genuína de escutar a infância e, quem sabe, de aprender com essa mesma infância a lidar com dilemas éticos. Digo “espero que”, pois sei que frequentemente as perguntas e as respostas das crianças não são encaradas com seriedade. Tendemos a olhar para as crianças como as pessoas adultas de amanhã e não como as crianças de hoje. Devolvemos as suas intervenções com “ah, pois, é muito nova para saber” ou “ah, claro, tem 9 anos é natural que pense assim” ou “ah mas isso é muita informação para as crianças.”
Sim, há diferenças entre o ser criança e o ser pessoa adulta. Temos consciência disso e as crianças também têm. Não pretendo infantilizar as pessoas adultas nem adultificar as crianças. O meu apelo é para que possamos olhar e considerar as ideias das crianças da mesma forma que olhamos e consideramos as ideias das outras pessoas.
Recentemente, José Maria Pimentel, autor do podcast 45 Graus, conversou com Tom Chatfield, uma das minhas referências na área do pensamento crítico. A dada altura Chatfield refere o seu trabalho em empresas; diz o autor de vários livros publicados em português que uma das formas que encontra para ajudar as pessoas a tornar o seu discurso claro passa por pedir-lhes que expliquem como se estivessem a conversar com uma criança de 5 anos.
A ideia de Chatfield vem ao encontro da minha prática diária de diálogos com crianças e daquela que é, para mim, uma das suas maiores vantagens: se eu conseguir pensar numa forma de trabalhar a ética e a justiça com crianças de 5 anos, então consigo fazê-lo com pessoas de qualquer idade. É que trabalhar com crianças do jardim de infância exige pegar em problemas complexos, libertá-los da linguagem complexa e contemplá-los da maneira mais clara possível. Notem que os problemas não deixam de ser complexos, apenas são considerados de forma clara e simples.
A obsessão pela transparência
No seu livro O que é a Filosofia?, António de Castro Caeiro realiza uma releitura da palavra filosofia como uma obsessão pela transparência. A atitude filosófica tem na sua base a busca pela transparência e a resolução da opacidade com a qual o mundo nos brinda.
Esta leitura da palavra filosofia diz muito daquele que é o trabalho filosófico, assente na estrutura do diálogo, que realizo com crianças, jovens e pessoas adultas.
Nos diálogos com as crianças sobre os dilemas éticos essa obsessão pela transparência aconteceu quando procurámos compreender os contornos dos dilemas. Vejamos um exemplo.
O que devemos fazer?
Imaginem que a vossa melhor amiga danifica um equipamento na escola por descuido. Estava a brincar com o único bebedouro do recreio e avaria-o, ainda que nós tenhamos avisado para parar de brincar com o bebedouro. Nós somos a única pessoa que sabe quem foi responsável pela situação. Ao sermos confrontados com um apelo da Direcção da escola para que a pessoa responsável assuma o que fez sob pena de toda a escola ficar sem visitas de estudo, o que devemos fazer?
No meio empresarial há certamente exemplos semelhantes. Não envolvem bebedouros; talvez possam envolver o uso indevido de outros equipamentos e para outros fins que não a pura diversão. A consequência não será o cancelamento de visitas de estudo, mas a suspensão de outros benefícios. As semelhanças continuam, por ser muito comum sancionar o grupo pela acção indevida de um só indivíduo. Este tipo de sanção é eticamente discutível: por que razão temos de fazer com que todos paguem pelas acções de uma só pessoa?
Durante os diálogos que surgiram em torno deste dilema surgiram pontos de vista bastante pertinentes: saber que tipo de amizade têm aquelas duas pessoas. A resposta à pergunta “O que devo fazer?” muda se a amizade for recente, se já tiver muitos anos ou se são apenas conhecidos. No ambiente empresarial isso também se reflecte, nem sempre em termos de amizade, mas de antiguidade. Devemos denunciar se a pessoa é nova na empresa? Ou se já é alguém sénior?
Outro ponto importante: a qualidade da acção que danifica o bebedouro. Estava mesmo a brincar? Ou foi um acidente? Até que ponto a pessoa sabia que aquele gesto repetido iria danificar o equipamento? Como tratar a intenção do gesto e o conhecimento que se tem daquilo que o gesto pode provocar?
Antes de respondermos às perguntas dos dilemas éticos foi importante explorar a complexidade do dilema. Várias perguntas foram feitas no sentido de compreender melhor o dilema e antes de avançarmos com uma resposta. Sim, também há crianças impulsivas que respondem logo, assim, no momento imediatamente posterior à leitura do dilema. Parece que têm uma resposta pronta. Será que isso acontece por terem pressa em resolver o dilema? Será que já tinham tido oportunidade de pensar sobre algo semelhante?
O que podem as pessoas adultas aprender com a infância?
A minha resposta a esta pergunta não se prende tanto com o conteúdo dos diálogos que tenho o privilégio de dinamizar, mas com a forma.
As pessoas adultas podem aprender a dar dois passos atrás. A considerar dizer “não sei” mais vezes. Mesmo que já tenham pensado sobre o assunto e já tenham uma posição, as pessoas adultas podem praticar um exercício simples: investigar um pouco mais sobre o assunto, sobretudo sobre as posições opostas à sua.
A ética e a justiça constituem-se como conteúdo das oficinas e dos diálogos e, simultaneamente, como forma. A ética e a justiça estão presentes nas atitudes fundamentais de quem pretende dialogar. A humildade, a honestidade e o compromisso com a investigação e a resolução da opacidade são atitudes que podemos exercitar diariamente.
Hoje procurei exercitar aqui convosco, amanhã farei o mesmo em duas salas de jardim de infância.
Muito obrigada pela vossa disponibilidade em escutar-me e às vozes da infância que trago comigo.
Agradecimentos
Agradeço ao LU.CA – Teatro Luís de Camões pela oportunidade de pensar e criar as oficinas sobre os grandes dilemas éticos.