como reconhecer um livro filosoficamente provocador?"
- era uma vez a filosofia
os livros infantis são um recurso habitual nas minhas oficinas de filosofia, com crianças e jovens (e também com adultos, confesso).
tradicionalmente, a filosofia para crianças implica o uso de histórias (a que M. Lipman chamou de novelas) redigidas especificamente para as oficinas de filosofia, entenda-se, com intenção filosófica. contêm propostas para pensar com ligação a grandes áreas temáticas da filosofia (exemplo, a história À Descoberta de Aristóteles Maia aborda a Lógica).
hoje em dia já são muitos os recursos adoptados pelos facilitadores de oficinas de filosofia para crianças e jovens: imagens, fotografias, vídeos, jogos e livros ilustrados.
uma das questões que surge com frequência nas formações que tenho assegurado é:
como reconhecer um livro filosoficamente provocador?
apoiada nas ideias de Ellen Duthie aponto aqui um elenco de características que nos permitem reconhecer um livro filosoficamente provocador.
a curiosidade
seja pela palavra ou pela ilustração, há livros que nos aguçam a curiosidade e que nos motivam a querer virar as páginas por querermos saber o que vem a seguir, o que aconteceu depois ou que desafio enfrentou o personagem (ou personagens).
a ampliação (do pensamento)
por ampliação do pensamento entendo aquilo que nos permite ver além do nosso ponto de vista inicial.
por vezes esta ampliação exige um olhar de cima (como se fossemos um helicóptero), ou o movimento de recuar no pensamento, para ver a "big picture".
a tensão (ou conflito)
as histórias com textura são aquelas que apresentam uma tensão ou um conflito. cumprem com o básico do storytelling (que agora está tão na moda):
- era uma vez...
- todos os dias...
- até que um dia...
- então...
- e viveram felizes (será?) para sempre (hummm...).
o que nos atrai é a tensão, o conflito, o problema. e isso pode motivar-nos a praticar o "como resolveria essa situação no lugar de..." e a pensar "e se...?". os obstáculos e os problemas são algo que dão que pensar.
os filósofos são os fãs n.º 1 de problemas, tal como os cientistas.
a incerteza
quando começamos a ler o livro há uma incerteza primeira que é a de não sabermos como acaba a história.
e quando o livro não nos diz como é que a história acaba? e se não estivermos sequer a falar de um livro (no seu sentido tradicional e formal), mas de uma proposta como a Wonder Ponder?
a actividade (do leitor)
um livro filosoficamente provocador exige um leitor activo, que coloca hipóteses, que quer saber mais, que tem interesse e algo a dizer sobre o que está a ver, a ler ou a sentir. um livro filosoficamente provocador também é aquele que podemos sentir.
as possibilidades
entendo por possibilidades o facto do livro não se fechar numa única forma de ver o mundo ou até mesmo por apresentar diversidade de abordagens, de pontos de vista.
a provocação
“Carefully selected picturebooks are particulary suited as provocations for philosophical work with abstract concepts (…)
Murris sublinha a desorientação, a incerteza, a dissonância e o desacordo acerca do significado, elementos que permitem e incentivam professores e alunos a construir significados e conhecimento, em colaboração (Karin Murris, The posthuman child, pp. 204-206).
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cada um dos livros (ou álbuns) não tem de reunir TODAS estas características para ser filosoficamente provocador.
já dei por mim a levar a cabo oficinas de filosofia com livros cuja história é "fechada" ou contém uma mensagem, precisamente por considerar que pode ser um bom ponto de partida para a desconstrução desse final ou dessa mensagem. esse tem de ser um processo de escolha consciente por parte do facilitador da oficina de filosofia que atende às características do grupo com o qual está a trabalhar.
não há receitas - e, pensando bem, as melhores receitas são aquelas que nos permitem adaptar ingredientes e acrescentar algo nosso. talvez a receita seja: pegue na receita e adapte, recrie, retire, acrescente; tendo em mente aquilo que distingue uma mera conversa de um diálogo.