matar o "mas"
Recentemente li o livro Ler o Mundo, de Michèle Petit, recomendado num dos encontros do Clube de Leitura Arco da Velha, dinamizado pela Andreia Salgueiro.
A recomendação veio mesmo a calhar pelo facto de me ter ajudado a pensar nos conteúdos do ciclo de oficinas sobre Filosofia, Literatura e Infância na BIJ, em Cascais (mais informações neste link).
Gostaria de destacar uma passagem que fala da morte do “mas”. O “mas” aparece muito nos diálogos filosóficos e nas conversas que temos todos os dias. Dizia-me uma criança, há uns anos, que aquilo que queremos mesmo dizer vem depois do “mas”: “joana, a primeira parte da frase é só para ser simpático, depois do mas é que vem mesmo o que queremos dizer.” Desde então tenho procurado prestar muita atenção aos “mas” que digo e aos “mas” que oiço.
Confesso: apetece-me matar alguns “mas”.
“Quando, por acaso, descobri esta feira, houve um pormenor que me intrigou: no meio de cada bricabraque havia sempre uma maçã trespassada por uma tesoura. Por vezes, encontrava-se em lugares insólitos: um anjinho barroco, suspenso por um fio de uma árvore sobre toda aquela miscelânea, lançava uma flecha… em que a maçã estava espetada. Acabei por interpelar uma estudante que encontrei sentada nos degraus de uma igreja. Olhou para mim, divertida:
Ah, reparou na maçã? No entanto, escondemo-la sempre um bocadinho… Sabe, aqui, a uma maçã chamamos um pero [que em castelhano significa também “mas”]. E a vida, o que é? É sempre: “Amo-te, és tudo para mim, mas deixar a minha mulher, com as crianças, nem penses!” Ou então: “Aquela mulher é linda, tem uma tez de pérola, mas o seu nariz…”
Então, durante a Festa, uma ver por ano, matamos o pero, matamos o “mas”.
(Michèle Petit, Ler o Mundo, pp. 128-129)