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📷 Oriol Portell / Unsplash
"O que torna aguçada uma leitura?" (**)
Antes de tentar desvendar os ingredientes ou mecanismos que provocam uma leitura aguçada, vou começar por descrever a minha ideia do que pode ser uma leitura deste tipo.
A palavra "aguçada" remete- me à faca capaz de cortar. Uma faca que desassossega, que inquieta, que nos incomoda, que nos põe em apuros e que nos coloca contra a parede.
Mas gosto da ideia de que a mesma faca, com aquele gume, também pode ser usada para abrir um melão. E adoro leituras capazes de abrir melões.
Essa palavra “aguçada” também me leva, talvez por associação fonética, a outro tipo de faca muito interessante e muito diferente. Navalhas filosóficas, como a navalha de Ockham, que sugere que a explicação mais simples é a mais provável; ou a navalha de Hanlon (nunca atribuamos ao mal aquilo que se explica apelando à estupidez) ou a guilhotina de David Hume (o que deveria ser não se deduz do que é).
Essas navalhas são úteis, trazem luz são aguçadas, com certeza.
A palavra “aguçada” também me leva a pensar em “edgy” em inglês. Literalmente "agudo", mas com um duplo sentido que me interessa também pela leitura. Num de seus significados, "edgy" significa "inquieto, tenso, nervoso", mas noutro significa "provocativo, ousado, vanguardista".
Portanto, uma leitura aguçada para mim engloba todas essas virtudes: uma leitura que preocupa, que pica, que perturba e provoca, que comove e afasta, que nunca nos deixa indiferentes e que muitas vezes acaba por trazer luz. Outra forma de olhar, ligando com o título dessas conferências (***), seria dizer que a leitura aguçada é aquela que nos prende a atenção até à quietude e depois coloca-nos em movimento. Ou vice-versa. Também pode capturar-nos no movimento até levar-nos à quietude da atenção.
Acho que pode ser bidireccional.
Muito bem, mas a dúvida era sobre o mecanismo: o que torna uma leitura "aguçada"?
Escolhi quatro elementos que me ocorrem quando penso se uma leitura foi aguçada ou não. Sem dúvida haverá mais elementos, mas estes quatro constituem um bom ponto de partida.
O primeiro elemento relaciona-se com a escolha da leitura.
Pessoalmente, se eu quiser aumentar as possibilidades de uma experiência de leitura compartilhada se revelar aguçada, procuro livros que activem a busca, a curiosidade, a intriga.
Evito livros que desencadeiam o reflexo de tentar adivinhar aquilo que o/a professor/a ou autor/a quer.
Procuro livros que deixem uma pergunta e evito livros que deixem uma mensagem.
Procuro livros que exijam um leitor activo e evito livros que pressupõem um leitor passivo.
Procuro livros que representam um conflito interessante e evito livros que afirmam resolver um conflito por nós, por exemplo.
O segundo elemento que importa é a atitude com que se chega a essa leitura e com que se nos propõe essa leitura. Vamos chamar essa atitude de “atitude de exploração”.
O terceiro elemento fundamental é o tempo que pode ser dedicado a essa leitua.
E o quarto é o espaço.
Na realidade, estou convencida de que qualquer leitura pode ser aguçada, mesmo que a priori possa prometer pouco, desde que haja uma atitude exploratória, bem como tempo e espaço suficientes.
(*) texto de Ellen Duthie, publicado no blog wonder ponder, em setembro de 2021, tradução de Joana Rita Sousa (dezembro de 2022)
(**) no original: ¿Qué hace de una lectura que sea “FILOSA”?
(***) o texto foi redigido no âmbito de uma conferência intitulada Lectura: quietud y movimiento”, organizada por CEDILIJ.