filosofar a brincar
filosofia, uma brincadeira muito séria
uma nota: por filosofia entenda-se um espaço e um tempo que convida um grupo de pessoas a fazer acontecer a filosofia. entendo a filosofia como um verbo, um movimento que nos desloca da pergunta para a resposta, para o comentário ou para a outra pergunta.
há dias numa tímida turma de 3.º ciclo perguntavam-me onde é que eu era professora. segundo um dos participantes eu seria demasiado bem disposta para ser professora. respondi que sou uma pessoa sem escola e que o meu trabalho passa por dinamizar oficinas de filosofia com todas as idades, a partir dos 3 anos. não ter escola permite-me conhecer várias escolas de Portugal, continente e ilhas - e também noutros países.
não irei expor o porquê desta minha prática filosófica, pois o assunto que me traz aqui é mais o "como". como acontecem estas oficinas?
um dos trampolins para estas oficinas é o jogo. o jogo tem uma dimensão lúdica, tem regras e normalmente permite vários jogadores. o jogo não é a realidade, porém pode fazer-nos pensar a realidade.
na minha experiência de dinamização de oficinas de filosofia com pessoas das mais diferentes idades e geografias, a apresentação da proposta do "trabalho de pensar" (Saramago) através do jogo é meio caminho andado para envolver as pessoas participantes. a outra metade do caminho prende-se com o trabalho filosófico em si mesmo. como é que este trabalho acontece?
o pensamento crítico e a sua aplicação cuidadosa
uma das competências que se trabalha nas oficinas de filosofia diz respeito ao pensamento crítico. de acordo com Lima, o pensamento crítico
"é a aplicação cuidadosa da razão para decidir em que acreditar e, portanto, como agir. destaque para as partes importantes da definição:
Pensamento cuidadoso (sensatez)
Uso da razão (lógica)
Julgamento sobre crenças (avaliação)
Aplicação a problemas reais (ação)”
não é fácil, nem rápido. é bastante exigente: exige treino, bem como atenção à complexidade e ao detalhe. exige compromisso com a investigação filosófica (philosophical enquiry - Peter Worley). exige sensibilidade ao contexto (filosofia para crianças, M. Lipman e A. Sharp).
"e se...?" - as portas que o pensamento criativo nos abre
na linha de Robert Fisher, o pensamento criativo diz respeito à criação de atalhos, a questionar a forma habitual de fazer as coisas, à curiosidade e à investigação, à associação de ideias, à observação de semelhanças e de diferenças, bem como à flexibilidade.
ainda que eu não defenda "X", posso imaginar como será o pensamento de alguém que defende "X" numa dada situação. esta atitude permite-me inclusivamente testar a solidez da minha posição, quem sabe melhorá-la e até abandoná-la. é possível que eu possa estar errada e observar a ideia dos outros pode fazer com que eu regresse à minha ideia com mais clareza.
pensar, escutar e falar: o pensamento colaborativo
Peter Worley apresenta numa das suas últimas obras - Corrupting Youth - um triângulo dialéctico muito simples que estrutura o trabalho que desenvolvo nas oficinas de filosofia:
há diferentes formas de participar numa oficina de filosofia: há pessoas que falam bastante, outras ficam em silêncio, há quem observe e só fale no momento de avaliar o trabalho - há quem se aborreça e há quem se entusiasme muito.
mais importante do que a quantidade de participações é atender à qualidade da participação: passo a passo, aprendemos que a filosofia é um espaço para eu dizer o que penso, para dar as razões para pensar dessa forma e também para pensar com os outros, partindo das suas ideias, criticando-as ou acrescentando algo.
a escuta é fundamental nesse processo - e noutros, se tivermos em conta a recomendação 2/2021, 2021-07-14 - DRE, sobre A voz das crianças e dos jovens na educação escolar.
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na minha prática parto do pressuposto que as crianças, os jovens, os adultos - as pessoas que participam nestas oficinas - são capazes de conjungar o verbo "filosofia".
o meu papel passa por assinalar alguns momentos, focar o grupo no tópico, convidar ao aprofundamento filosófico, identificar as ferramentas da filosofia (conceptualizar, problematizar...), manter o lado lúdico do diálogo e espantar-me com o rumo dos diálogos.
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nas oficinas o verbo filosofia conjuga-se em forma de um diálogo comprometido com uma certa investigação e orientado pela obsessão pela transparência (António de Castro Caeiro). nesse diálogo-jogo há movimentos de pensamento (crítico, criativo, colaborativo e cuidadoso) que nos permitem avanços e recuos - e no fim, quem ganha? definitivamente eu ganho imenso, pois trago sempre algo novo comigo, em cada oficina de filosofia, recarregando os meus níveis de espanto e de abertura para dizer "nunca tinha pensado nisso".
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curadoria de links sobre a temática disponível AQUI.
referências:
Lima, Evelyn; Lima, Vitor (2020), Pensando bem, o básico do Pensamento Crítico, [ebook] Rio de Janeiro, INÉF
Sousa, Joana Rita (2014), "Fazer acontecer a Filosofia –da criação de condições para o surgimento dos "porquês", IV Encontro de Filosofia para Crianças e Criatividade Sentir Pensamentos | Pensar Sentidos, 6 e 7 de Novembro, Universidade do Minho [não publicado]
Sousa, Joana Rita, (2016), “Going down the rabbit hole”, I CICA – Congresso Internacional e Interdisciplinar da Criança e do Adolescente, 21 e 22 de Outubro, Universidade dos Açores – Ponta Delgada [não publicado]
Sousa, Joana Rita (2017b), Laurance Splitter: "(...) we need to take their questions seriously, and check with them before assuming we know exactly what they mean." [blog post] in https://joanarssousa.blogs.sapo.pt/laurance-splitter-we-need-to-take-481425 (acedido em julho 10, 2018)
Sousa, Joana Rita (2019), Queres saber? Pergunta., [dissertação de mestrado] in https://repositorio.uac.pt/bitstream/10400.3/5258/1/DissertMestradoJoanaRitaSilvaSousa2019.pdf (acedido em 1 de novembro de 2021)
Worley, Peter (2021), Corrupting Youth, Reino Unido, Rowman & Littlefield