no passado dia 30 de Outubro aconteceu a cerimónia da 3ª Edição do Global Teacher Prize Portugal. estiveram representados os professores portugueses que de uma ponta à outra do país dão o seu melhor pela educação e pela infância.
a Paula Vieira foi uma das professoras nomeadas para este prémio. conheci a Paula durante o meu percurso no mestrado da Universidade dos Açores. não podia deixar de assinalar este momento importante para a Paula e para a filosofia (para crianças) e foi assim que surgiu este diálogo, estas perguntas e respostas, à distância, via e-mail. esta partilha é mais uma forma de celebrar o Dia Mundial da Filosofia (19 de Novembro de 2020). como sabe, aqui na filocriatividade a filosofia celebra-se todos os dias!
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olá, Paula. antes de mais, parabéns pela nomeação para o Global Teacher Prize. o que significa para ti, enquanto professora, este reconhecimento?
Bom dia alegria. Olá Joana. Obrigada pela lembrança, pela simpatia e pelo interesse.
A nomeação para o Global Teacher Prize é uma nomeação para a força da ideia de juntar a filosofia e as crianças. A filosofia convidou as crianças e elas aceitaram o convite, trouxeram todas as infâncias e nada ficou como dantes.
A força da ideia de juntar a filosofia e as infâncias, cria outras possibilidades e outros modos de ser-se escola, de estar-se na escola, de fazer-se escola. E isto não acontece por causa de uma ou outra professora, de uma ou outra personalidade.
Toda a estrutura do concurso e a lógica do Global Teacher Prize é a de nomeação de uma pessoa, porém eu sou somente a face visível de um grupo de pessoas filosofantes, de todas as idades, que acreditaram e deram corpo à ideia de promover o encontro entre a filosofia e infâncias. Refiro-me, naturalmente a crianças, adolescentes, jovens, adultos, professorxs, estudantes, órgãos diretivos da escola Armando Côrtes-Rodrigues (Vila Franca do Campo, São Miguel, Açores), Autarquia de Vila Franca do Campo e o Mestrado de Filosofia para Crianças da Universidade dos Açores.
o mestrado foi o espaço e o tempo onde nos conhecemos. não posso esquecer que foste apoiar-me no dia da defesa da minha dissertação, naqueles tempos longíquos em que era preciso viajar de lisboa para são miguel para defender uma dissertação. agora conseguimos fazê-lo com uma simples viagem zoom.
para quem não conhece, podes falar um pouco sobre as Filosofâncias? como começou este projeto?
Sabes, Joana, existirão muitas maneiras de se contar uma história. Uma delas, suponho será contar a história a partir daquilo a que chamo “ideias tipo murro no estômago”. São aquelas ideias que nos deixam sem ar, nos tiram o chão e fazem-nos pensar a partir de outros lugares que não os habituais e costumeiros. Posso dizer-te que foi assim que começaram as Filosofâncias na EBS Armando Côrtes-Rodrigues em Vila Franca do Campo, São Miguel Açores.
Passo a contar a história.
Em 2012, numa ação de formação da Universidade dos Açores subordinada ao tema “Filosofia para Crianças”, conheci Matthew Lipman, o filósofo norte-americano que afirma que as crianças têm fome de sentido e que a escola está a matar à fome a fome de sentido que as crianças têm. Foi uma ideia tipo “murro no estômago”. Como poderia eu, enquanto professora, e a escola enquanto sistema e instituição, estar a matar à fome esta fome de sentido?
Em 2014/2015, o grupo de filosofia da escola criou o projeto Filosofâncias: comunidades de investigação filosófica. Iniciou-se com 39 alunos, duas turmas do primeiro ciclo. No ano letivo de 2020/2021, são 580 estudantes-filosofantes (27 turmas) desde o pré-escolar até ao 8.º ano de escolaridade que têm sessões regulares e continuadas de investigação filosófica em comunidade (45 minutos todas as semanas). O modelo educativo é o da experiência de pensamento em comunidade de investigação filosófica que acontece em contexto de sala de aula. As mediadoras (com formação em filosofia e algumas também em fpc) são recebidas nas salas de aula, a convite dxs professorxs da turma e, todxs juntos, fazemos sessões de diálogo filosofante com crianças. O projeto Filosofâncias é reconhecido no Projeto Educativo da escola como um projeto identitário e constituindo esta Instituição a única na Região Autónoma dos Açores, e uma das poucas no País, com um projeto estruturado e transversal na área.
A relação estreita entre o projeto Filosofâncias da escola Armando Côrtes-Rodrigues e o Mestrado em Filosofia para Crianças da Universidade dos Açores, protocolizado desde 2015, tem trazido à escola filósofos da área para investigarmos filosoficamente em conjunto: crianças-filosofantes, professores filosofantes e filosófos-filosofantes. E a escola Armando Côrtes-Rodrigues tem sido convidada a estar presente em fóruns internacionais da especialidade. A parceria entre escola Armando Côrtes-Rodrigues, pela mão das Filosofâncias, e a Universidade dos Açores, pela mão do Mestrado em Filosofia para Crianças, derrubou alguns muros tradicionais entre a academia e a escola: as crianças, jovens e professores entram na universidade não como objetos de estudo mas como parceiros na construção de conhecimentos e os professores universitários entram na escola não como especialistas com receitas a implementar mas como parceiros de experiência de pensamento, e esta é mais uma ideia tipo “murro no estômago”.
do teu ponto de vista, qual é a mais valia da filosofia no percurso escolar da criança?
A pergunta do impacto ou da mais valia da filosofia no percurso escolar da criança é uma das que mais me colocam… E, suspeito, que esta é uma questão que se pode transformar numa armadilha para este encontro entre a filosofia e as crianças.
Será necessário uma mais valia para a presença da filosofia no percurso escolar da criança? Não poderemos ser conduzidos a pensar que, de certa maneira, o que se passa no percurso escolar é uma espécie de investimento no futuro e que encaramos as crianças/jovens como pessoas em compasso de espera, a quem lhes falta ser no presente? Não será isso que se adivinha em afirmações tão comuns e bem-intencionadas como “as crianças e os jovens são o futuro, o amanhã de uma sociedade”? Na maior parte das vezes tomam-se decisões na escola, na família, da sociedade, sobre o que é melhor para as crianças, acerca do que as crianças são e querem ser, do que gostam e precisam e não se ouvem as crianças.
Ora, uma comunidade de diálogo filosofante com crianças, como a entendemos no projeto Filosofâncias, é um lugar de encontro entre pessoas de todas as idades, em torno de perguntas que nos fazem pensar em conjunto em que mundo vivemos e em que mundo queremos, em conjunto, viver. É um encontro num tempo presente que dura. É um encontro onde a pergunta “o que é que queres ser quando fores grande”, por exemplo, parece menos interessante do que perguntar “enquanto não for grande o que sou ou é preciso ser grande para ser?” As sessões de diálogo filosofante promovem a escuta das vozes infantis e, o maior desafio, para além de escutar as vozes é pensar com elas.
A tua pergunta, Joana, provocou em mim uma outra pergunta: qual seria a mais valia do pensamento filosófico infantil para o percurso da filosofia?
boa pergunta, essa. tenho outra para ti, aqui no bolso.
podemos dizer que a filosofia é necessária nesse percurso escolar?
Atrever-me-ia a dizer que sim. A filosofia entendida como um modo de estar no mundo, como uma olhar infantil para a escola, cria possibilidades de abrir brechas dentro da instituição escolar para novos modos de relações educativas, novas relações com o conhecimento a partir da pergunta. É que as respostas podem estar certas ou erradas e introduzem clivagens entre as pessoas que sabem e as que não sabem. As perguntas não estão certas nem erradas, serão interessantes, serão início de pensamento, permitem que os assuntos continuem e o pensamento se desdobre e, suspeito, que as perguntas sejam mais democráticas do que as respostas.
O encontro entre a filosofia e as crianças pro-voca uma certa perturbação, um certo desassossego, uma certa mudança na ordem comum, e indica-nos novos olhares sobre a filosofia e o filosofar. Em certo sentido, lança um olhar diferente acerca do que é uma criança, não enquanto potência para o que pode ser, mas para o que é. A filosofia cumpre, desde modo, mais algumas das suas vocações: a filosofia para/com crianças trouxe para a filosofia o filosofar infantil e reconhece as crianças como sujeitos válidos de um pensar filosófico, dá voz a uma diáspora humana: à infância; derruba muros entre diferentes espaços educativos como seja a escola e a universidade; abre na escola espaço para a skolé, um lugar de encontro com a pergunta, de encontro entre humanos de diferentes idades, de encontro com o tempo presente…
A título de exemplo: António, uma criança de oito anos, afirmava em 2016: “As sessões de filosofia não são aulas. Nas aulas fala-se de coisas que aconteceram no passado e coisas que servem para o futuro. Nas sessões de filosofia tratamos de coisas da nossa vida, o que importa no presente, por exemplo, o que é a vida, o que é a felicidade e outras coisas…” O menino verbaliza que o processo de pensamento de uma comunidade de investigação filosófica é um pensar relativo à experiência de vida significativa, presente, vivenciada na e pela comunidade, isto é, não se trata de preparar-se para algo que está para vir. As sessões de filosofia, este espaço que é o mesmo de uma aula comum, enche-se de vida presente, da presença da vida e torna-se num lugar, uma presença no presente.
se um pai ou uma mãe te pedirem um conselho, uma sugestão sobre como praticar as perguntas, em casa, que sugestão farias?
Sugeria que escutassem as perguntas das crianças e as alimentassem com mais perguntas, e resistissem à tentação e, acrescentaria, à tirania de dar respostas. Sugeria que experimentassem deixar impregnar o próprio pensamento com as perguntas infantis, dito de outro modo, tornar a pergunta infantil num perguntar-se. Talvez possamos pensar que um caminho que se inicia com a pergunta, que se alimenta com o perguntar e se transforma num perguntar-se seja um modo de nos encontrarmos infantilmente uns com os outros, independentemente das idades.
podes falar um pouco sobre o projecto ¿filo... quÊ? Do que se trata e como podemos ter acesso a ele?
O ¿filo... quÊ? é uma rubrica de filosofia para crianças incluída no programa televisivo “Aprender em Casa” da Direção Regional da Educação (DRE). Após a experiência de confinamento no ano letivo anterior, o Diretor Regional da Educação pensou que seria importante que a filosofia para crianças também tivesse o seu espaço no “Aprender em Casa”. A nova rubrica ¿filo... quÊ? do programa Aprender em Casa, nasce da parceria já existente entre a Universidade dos Açores, através do Mestrado em Filosofia para Crianças, e da Escola Armando Côrtes-Rodrigues, no âmbito das Filosofâncias.
Esta rubrica não assume como público-alvo uma faixa etária única, mas dirige-se a qualquer ser humano que se relacione filosoficamente com o mundo através de perguntas, ideias e conceitos que decorrem da sua própria experiência.
Os programas, nas suas diferentes fases de conceção, escrita e gravação, contam com a colaboração das crianças. Considera-se que esta é uma oportunidade de escutar as vozes, pensamentos e perguntas das crianças enquanto construtoras dos mundos em que habitam, reafirmando alguns pressupostos que a própria filosofia assume no modo como está na escola. Neste contexto, o programa conta com um Conselho de Conselheiros formado por crianças de diferentes idades. Este Conselho acolhe diferentes crianças ao longo do ano letivo, reúne-se semanalmente para a realização de sessões de filosofia que servirão, elas próprias, de sementes para os guiões dos programas.
A rubrica é da responsabilidade de uma equipa multidisciplinar, quer do Mestrado em Filosofia para Crianças, quer do projeto Filosofâncias, o que reafirma também a dimensão transversal do pensamento filosófico.
É uma rubrica que não assume um formato fechado, mas que se pensa e se reinventa a partir da posição filosófica de maravilhamento em relação ao mundo, assim como do ponto de partida de não-saber. Espera-se que o ¿filo... quÊ? seja um tempo para que a infância brinque filosoficamente e a filosofia se pense infantilmente.
Todos os programas estão disponíveis no canal de Youtube Filosofia para Crianças na Universidade dos Açores.
além da filosofia e da filosofia para crianças, eu e tu temos outra coisa em comum: o gosto pela leitura e pelos livros.
por isso, termino este vai e vem de perguntas e respostas com uma curiosidade: que livro estás a ler neste momento?
Se te referes aos livros de cabeceira, leio sempre muitos livros ao mesmo tempo e, alguns deles, são releituras. Não sei bem porquê… Talvez porque sim.
Os que me acompanham agora são: Conversação com Diotima de Agostinho da Silva, O Leitor de Bernhard Schlink, Meu Pé de Laranja Lima de Pedro Mauro de Vasconcelos e Vamos Comprar um Poeta de Afonso Cruz.
Agostinho da Silva e Afonso Cruz, esse autores filosoficamente provocadores!
obrigada, Paula, pela disponibilidade. e parabéns!