não é a primeira vez que converso com pessoas através do google doc - é algo que já aconteceu a propósito de outros temas: no shifter conversei com o Pedro Rebelo sobre fake news e influenciadores; com o Pedro Ramos conversei sobre produtividade e preguiça.
com o Luís Cristóvão tive a oportunidade de falar sobre futebol e filosofia.
depois de conhecer o trabalho da Ana Sofia Nunes, mediadora cultural, surgiram-me algumas perguntas e foi assim que surgiu esta conversa, à distância.
[Joana] Ana, estou curiosa para saber o que faz, em concreto uma mediadora cultural. Podes ajudar-me?
[Ana] A minha noção de mediação cultural abrange várias coisas. Boa parte do meu trabalho é estudar história e objetos. Eu sou mediadora cultural em museus, o que implica que eu conheça a história dos museus onde trabalho bem como as suas coleções/exposições. A minha função central é dar a conhecer às pessoas que conteúdos são esses, de forma pedagógica, em que podemos partir de um objeto ou de uma exposição e criar várias narrativas, algumas delas revisitando assuntos na nossa sociedade atual. Ser mediador cultural é ser reflexivo, questionador, instigador...desempenhar um papel transformador ao nível educativo, cívico. O mediador cultural estabelece, mesmo que momentaneamente, uma relação com as pessoas com quem está, sejam crianças ou adultos. Importa tornar a participação das pessoas na visita/atividade relevante, mediando assim a construção de um significado tanto em relação ao museu em si, como em relação às narrativas que o objeto/exposição proporcionou. Tudo isto é realizado com base numa linguagem clara para que seja acessível a todos, independentemente da sua bagagem cultural ou académica.
[Joana] Temos em comum esta questão de apresentar algo que pode ser distante ao público, de forma acessível, clara e simples. Já pensei em apresentar-me como uma mediadora filosófica. Para ti tem algum sentido? Ou é um abuso face à noção de mediador?
[Ana] Visto que tu estudas a filosofia e a tornas acessível a outras pessoas, e que também o fazes com objetivos pedagógicos, não considero que seja um abuso de todo. Mediar, no sentido do significado da palavra, é criar pontes, ligações. Ser mediador é, para mim, ser mais que um facilitador, na medida em que a pedagogia e a educação estão sempre presentes. Revês-te nesta descrição?
[Joana] Sabes, a palavra facilitador é aquela que se usa, de forma mais comum, para descrever a pessoa que “ministra” ou que “orienta” as oficinas de filosofia para crianças e jovens. Na minha dissertação de mestrado apresento uma proposta diferente, brincando com o fácil (presente na palavra facilitador) e o difícil. Sugiro que se nomeie dificultador ao (outrora) facilitador. É um bocadinho provocador, mas eu sustentei a coisa com jogo de cintura académico! Agora que penso na palavra mediador, tal como a descreves, começo a perceber que poderá ser uma alternativa muito clara para dar a conhecer o que fazemos. Vou pensar nessa possível adopção. Obrigada por me ajudares a pensar nisto!
[Ana] Pelo que percebi, nas tuas sessões, tu respondes com perguntas às perguntas que foram feitas certo? Acontece-me com alguma frequência nas visitas que faço, quer com crianças quer com adultos, os participantes procurarem respostas definitivas a algumas perguntas que têm. Noto que todos procuram uma verdade absoluta e nem sempre isso é possível. A História, enquanto área do conhecimento, tem-nos possibilitado conhecer melhor o passado mas conforme a tecnologia avança ou outras pesquisas se realizam, novas descobertas são feitas. É por isso que faço questão de frisar, nas minhas visitas, que “de acordo com as investigações feitas, o acontecimento “y” passou-se assim”, o que não significa que daqui a uns anos se descubram coisas que mudem completamente a narrativa...até porque, conforme se mudam as perspetivas, também as narrativas mudam.
[Joana] A filosofia para crianças e jovens tem a pergunta como base e é comum esse gesto de devolver a pergunta à criança que a faz. É importante dar espaço e tempo para as perguntas das crianças e também fazer espelho das suas perguntas. O que é que a pergunta da Mariana está a perguntar? O que pretende saber? Precisamos esclarecer algo na pergunta antes de investigar a sua resposta? É muito neste sentido que acontece o tal “responder à pergunta com perguntas” de que falas.
[Ana] Quais foram as questões mais constrangedoras com as quais te deparaste nas oficinas de filosofia com crianças?
[Joana] Há temas ou situações que trazem constrangimento - sobretudo para nós, adultos. Lembro-me de perguntas que surgem espontaneamente e que tratam de temas densos como a vida para lá da morte ou da existência (ou inexistência) de deus. As crianças perguntam mesmo por estas coisas e muitas vezes isto surge no seguimento de um diálogo que não o fazia prever. Como é que lido com estes temas? Bom, trato-os como trato os outros, assumindo que é a curiosidade da criança que a está a conduzir. Não estou ali para dar respostas, muitas vezes apresento possibilidades de respostas que depois temos (eu e as crianças) de investigar, de questionar e avaliar. Lembro-me de um dia ter chegado a uma escola e as crianças estarem assustadas com uma figura, a “maria sangrenta”, uma figura imaginária e, pelos vistos, assustadora que estava nos espelhos. A oficina desse dia serviu para que me explicassem o que era e qual a razão para ter medo disso. Nesse dia distinguimos ou trabalhámos o tema da realidade versus fantasia. Resultado? A maria sangrenta, deus, o pai natal e as fadas foram “arrumadas” na gaveta das coisas que são fantasia. Agora imagina a criançada a chegar a casa e a questionar os pais se deus e as fadas são da mesma “família” - será sempre mais constrangedor para os adultos, que têm mais ideias feitas sobre as coisas.
[Ana] Tens trabalhado com educadores e professores em ações de formação. Consideras que há um interesse crescente na filosofia para crianças ou ainda é muito subtil?
[Joana] A formação para educadores e professores foi algo que comecei a fazer ao mesmo tempo que estava no terreno a desenvolver oficinas para crianças e jovens. O meu projecto sempre teve um cariz itinerante e muitas vezes aproveitava a viagem para trabalhar com estes dois públicos: professores e educadores (e outros agentes educativos) e com as crianças e jovens. Foi nesses moldes que viajei até ao Faial, ao Funchal, a Maputo, a Braga, a Faro, a Águeda - isto só para nomear alguns espaços onde já trabalhei. A riqueza da itinerância é a possibilidade de conhecer e trabalhar em contextos diversos.
Noto que há interesse; o crescimento tem flutuado ao longo destes 12 anos, pelas mais diversas razões (económicas, por exemplo). Os adultos que me procuram para formação estão verdadeiramente interessados e querem mesmo aprender e fazer um trabalho sério. Esta é uma boa premissa para trabalhar, mesmo que não sejam muitas as pessoas nesta sintonia. Menos é mais, pois é importante a seriedade do trabalho.
E agora pergunto eu: qual é interesse, que movimento há de procura em torno da mediação cultural?
[Ana] A mediação cultural é uma área que tem vindo a crescer em Portugal no sentido em que nos anos 80 houve um crescente boom no que respeita à criação de serviços educativos nas instituições culturais. Há quem não concorde com a designação “serviço educativo” mas é a que encontras maioritamente. Estes serviços foram pensados para trabalhar a parte educativa daquilo que são os conteúdos das instituições, o seu objeto de estudo. A procura da mediação justifica-se no sentido em que mediar uma exposição/coleção/objeto não é fazer uma visita guiada como muitas vezes observas em tours, nem colocar as crianças fazer trabalhos de expressão plástica sem sentido, só porque sim. A mediação cultural implica algo mais profundo como referi anteriormente. O movimento de procura de bons mediadores tem crescido da mesma forma que algumas instituições culturais estão cada vez mais conscientes do seu papel na sociedade civil.
[Joana] Uma curiosidade: qual foi o “objecto” mais difícil de mediar junto do público infanto-juvenil?
[Ana] Não foi propriamente um objeto, foi uma exposição chamada “Convivência(s). Lisboa Plural” do Museu de Lisboa. Foi difícil no sentido que eram abordados três assuntos dados a polémica: convivências religiosas, escravatura e relações entre estrangeiros. Embora toda a exposição fosse “um poço de assuntos controversos”, a parte do rapto e venda de pessoas escravizadas foi aquela em dei por mim a pensar como é que iria abordar os assuntos tendo em conta que alguns dos participantes tinham origem africana. Por vezes não sei quem fica mais constrangido, se eles se eu. Não queria de modo algum que o assunto os fizesse sentir inferiores; por outro lado, não posso deixar de falar das coisas, muito mais tendo em conta o nosso recente passado colonial que ainda está tão enraizado nas coisas banais do nosso dia a dia. Estes assuntos têm mesmo de ser abordados, assumidos, para que se possa dar um passo em frente, percebes o que quero dizer?
[Joana] Sim, percebo a pertinência dos temas. E agora uma curiosidade: qual é o teu processo de apropriação, de estudo, dos espaços que vais mediar?
[Ana] Descrevo-te o cenário: em cima da mesa ficam livros, cadernos de estudo onde faço apontamentos e esquemas, faço pesquisas na internet, vejo documentários… e várias visitas à exposição em causa. Sempre que me surgem dúvidas aponto e depois também acabo por me esclarecer com colegas que dominam mais aquele assunto bem como com os coordenadores/diretores. São várias horas de estudo para estruturar uma narrativa que depois varia consoante as perguntas ou interesses dos participantes. Se sei antecipadamente que vou fazer uma visita a estudantes de design foco o meu estudo nessa área tendo em conta aquilo que a exposição me dá. Outras vezes são os próprios professores que me pedem para abordar determinado tema/facto. Tenho sempre um fio condutor mas não há duas visitas iguais. Também é por isso que estou sempre a aprender coisas novas, pois os participantes também trazem consigo as suas vivências, os seus saberes.
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Quem é a Ana?
A Ana Sofia Nunes é mediadora cultural e da leitura/educadora. Acredita no poder da Educação, da Cultura e das Artes nas suas várias vertentes enquanto pilares transformadores da sociedade: uma sociedade mais justa, humanista e igualitária, composta por cidadãos com capacidade de pensamento crítico. Podem conhecer melhor o seu trabalho no website, no instagram e no facebook.