Se tiverem um acidente de automóvel não liguem para o Santo Agostinho
O acidente é uma coisa que, por definição, acontece de forma imprevisível. É uma «casualidade não essencial». Um «sucesso imprevisto». Há dias, a caminho da aldeia, tive um acidente de viação. Sem dúvida que este acontecimento constituía algo que para mim era «não essencial». Quando dei por mim tinha a traseira do carro em muito mau estado e uma dor na cervical. Nestas alturas é esperado que telefonemos para a polícia (sim, e o número?), que se trate de papéis do seguro com a descrição pormenorizada do acidente (hora, velocidade, isto, aquilo). Pedem-nos um esforço de memória que, perante o cenário de «casualidade não essencial», se afigura como difícil.
Já em casa, recebi a visita do Santo Agostinho. Sabem como é, nas aldeias as notícias correm depressa, sobretudo as más. Encontrou-me de volta dos papéis do seguro. Trazia um saco de pêras, bem verdes (como eu gosto). Agostinho de Hipona, fizeste uma visita ao quintal alheio?, perguntei-lhe, com um largo sorriso.
Joana, não brinques comigo, respondeu-me, sabes bem que os meus tempos de chinchada (*) já acabaram há muito. Além disso, tratei de plantar várias árvores de fruto, para não cair em tentação. Amén, respondi-lhe.
Contei-lhe da experiência do acidente e da necessidade de ter que prestar declarações sobre aquele: Agostinho, perguntam-me a que horas, a que velocidade ia, isto e aquilo. E o que me está mais fresco na memória é o caminho para o hospital e a estadia na sala de trauma e na sala de observação. E tudo me pareceu uma eternidade. Acho que o acidente foram segundos, mas até regressar a casa demorei um dia, ainda que tenham passado apenas três horas.
O tempo, dizia ele, o tempo. O tempo não existe per se, Joana, disse-me, pensativo. Eu sei, Agostinho, mas não posso propriamente responder isso perante a companhia de seguros, respondi.
Se não tiver que explicar o que é o tempo, sei o que é. Se me perguntas o que é, não sei dizer, disse-me Agostinho. E eu olhava para ele e para o documento do seguro. Agostinho, não estás a ajudar. E desabafei: é tão difícil descrever o momento do acidente, parece que não houve nada antes, apenas o embate, parece que foi a partir daí que tudo começou, sabes?
Agostinho sorriu e disse, isso faz-me lembrar aquela pergunta que tantas vezes me fazem « o que fazia deus antes de criar o mundo?». A verdade é que não há tempo sem mundo e sem mundo não há mudança e sem mudança não há tempo. Assim, o tempo e o mundo só podem ter surgido ao mesmo tempo. Assim aconteceu com o teu acidente, ele só surgiu com o embate, pelo que antes disso ele não existia.
Agostinho, continuas a não ajudar. O que me dizes a um chá?, perguntei enquanto me dirigia à cozinha.
Passámos o resto da tarde a beber chá e a conversar. Agostinho é um homem trabalhador e muito dedicado. Tem um apurado sentido de humor e é sempre um prazer tê-lo cá por casa. Mas não quando tenho que preencher participações de seguro.
(*) chinchada é um termo que designa o acto de apanhar fruta das árvores alheias, para comer. Na minha aldeia, diz-se que a fruta acabada de colher é a mais saborosa.